Por quase cinco décadas, Niède Guidon caminhou entre rochas milenares e pinturas rupestres como quem visita um templo sagrado. Com suas botas gastas e olhos atentos, ela não apenas descobriu vestígios das primeiras pegadas humanas nas Américas — ela os defendeu com a vida. Niède Guidon, arqueóloga franco-brasileira, morreu nesta terça-feira aos 92 anos, encerrando uma trajetória marcada por descobertas revolucionárias, resistência institucional e uma devoção quase religiosa à preservação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no interior do Piauí.

“Antes de Niède, o Brasil não sabia que guardava a chave de uma nova narrativa sobre a ocupação humana do continente. Depois dela, não há como esquecê-la”, afirmou Eric Boëda, professor da Universidade Paris Nanterre, e atual chefe da missão arqueológica franco-brasileira que Niède fundou.
A Mulher que Ousou Mudar a História
Nascida em Jaú, interior de São Paulo, em 1933, Niède Guidon formou-se em História Natural na USP e doutorou-se na Sorbonne. Poderia ter seguido carreira confortável nos institutos europeus, mas escolheu o sertão brasileiro. Nos anos 1970, ao chegar ao então quase inacessível sul do Piauí, encontrou pinturas rupestres, fósseis, e uma paisagem arqueológica que viraria o mundo científico do avesso.

Em escavações rigorosas, revelou que seres humanos habitaram a Serra da Capivara há mais de 50 mil anos, desafiando a teoria da ocupação tardia das Américas. Foi chamada de visionária por uns, de herege científica por outros. Mas ela seguiu.
Uma Luta Solitária por um Patrimônio Mundial
Guidon não foi apenas pesquisadora. Foi ativista, gestora, educadora e política informal de uma causa que poucos queriam abraçar. Fundou, em 1986, a FUMDHAM — Fundação Museu do Homem Americano, com o objetivo de administrar, proteger e difundir o conhecimento sobre a Serra da Capivara. Foi incansável na busca por recursos, enfrentando desde a ausência do Estado até sabotagens políticas.
Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o parque ficou sem verbas e chegou a ser fechado. A insegurança na região e a negligência federal quase sepultaram décadas de trabalho. Mesmo reclusa desde o início da pandemia de COVID-19, Niède permaneceu vigilante. “Aos 90 anos, acho que já trabalhei o suficiente”, disse em uma entrevista rara à Mongabay, com um sorriso que escondia a eterna inquietude da cientista.

Uma Última Celebração em Vida
Em 2023, aos 90 anos, foi homenageada por toda a cidade de São Raimundo Nonato, onde viveu pelos últimos 30 anos em uma casa simples nos fundos da FUMDHAM, cercada por seus cães e livros. O evento contou com o Cônsul Geral da França, o governador em exercício do Piauí e centenas de moradores — todos reunidos para celebrar a mulher que transformou o sertão em palco da ciência mundial.
“Chamaram-na de megalomaníaca por sonhar com aeroporto, universidades, museus, escolas técnicas. Ela era apenas uma visionária”, disse Carmelita Castro, ex-prefeita da cidade, durante a cerimônia. “Houve um Piauí antes de Niède Guidon. E há outro depois dela.”
O Legado
Niède Guidon deixa muito mais do que artigos científicos. Deixa um parque reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Mundial, uma fundação que segue promovendo ciência e educação no semiárido brasileiro, e uma geração de arqueólogos inspirados por sua coragem e determinação.
Ela foi, como disse um colega, “uma mulher à frente de seu tempo em um país que ainda não estava pronto para ela”. Mas mesmo assim, ela veio. E ficou.
Seu corpo será velado no Museu do Homem Americano. Seu espírito, dizem os moradores da região, continuará nas pedras, nas trilhas e nos desenhos milenares que ela dedicou a vida a proteger.
Niède Guidon, 1933–2025. Guardiã da pré-história, mãe da Serra da Capivara, eterna no tempo.